(Contando Caso)
´´ Quem conta um conto aumenta um ponto. ´´
Vila Velha/ES, 07 de Novembro de 2014, 08h37min da manhã.
Cenário: Ônibus lotado.
Mais uma vez eu vou contar um caso, um caso acontecido. Hoje acordei e fiz todo meu ritual matinal diário, saí de casa e fui para o ponto do ônibus. Vinte minutos depois ele chegou lotado como de costume. Entrei naquele ônibus lotado e demorei pelo menos mais uns dez minutos para conseguir pagar minha passagem e atravessar a tal roleta. Arranjei um cantinho e abri meu livro o Auto da Compadecida de Adriano Suassuna. Enquanto eu lia tentava conter o riso para com as falas de João Grilo e Chico. E o tempo foi passando. A cada ponto que o ônibus parava era um entrar e sair de gente.
Desta vez eu não me concentrei em observar as pessoas como sempre faço. Preferi ficar ali escorada onde dava lendo meu livro e rindo mentalmente para não parecer louca. Por que vou te contar uma coisa, a arrogância e intolerância têm sido tão grandes nas pessoas, que sorrir tem sido comparado à loucura. Deve ser louco mesmo conseguir sorrir dentro dum ônibus lotado. Ouvi algumas pessoas rindo, mas continuei concentrada no meu livro. Já estava na metade do meu trajeto e eu lá no fundinho do ônibus lendo meu livro, rindo por dentro por conta do velório da cachorra (risos). Foi quando de repente começou uma gritaria dentro do ônibus. Uma mulher parecia ter um mega fone na garganta! Continuei lendo meu livro, o padre enterrando a cachorra em latim. Mas o barulho estava incomodando muito, então olhei para frete, fixei meu olhar e fiquei ali tentando encontrar a mulher que gritava.
Encontrei!
Encontrei a mulher gritante!
Ela estava sem blusa gritando.
As pessoas diziam para ela vestir-se, ela gritava que não iria.
(Feminista!)
Era uma mulher feminista sem blusa gritando dentro do ônibus.
Havia quem se deliciava com a paisagem. Havia quem orava quem desviava os olhos, embora no fundo estivesse se esquivando para olhar. Havia quem ria da situação, quem falava mal da mulher. E eu vou te falar uma coisa, fechei meu livro. Por que além do discurso eram belos peitos. Eram belos! Não dá para continuar lendo um livro quando uma mulher está com os peitos de fora na sua frente.
Aquela mulher não era louca. Não mesmo! Era feminista. Era uma mulher de coragem...
Enquanto algumas pessoas debatiam com ela para que parasse com aquela atitude ela dizia:
- Vocês se impressionam com meus peitos?
Vocês estão reclamando dos meus peitos?
Vocês estão reclamando pelo fato deles não estarem dentro de uma blusa comportada?
Ou vocês estão reclamando da minha gritaria?
Eu estou aqui gritando pelas mulheres mortas no nosso estado, aquelas que não puderam gritar. Eu estou aqui gritando por elas. Vocês estão reclamando dos meus peitos às mostras, mas não reclamam por pagar passagem e andar no ônibus lotado.
Não reclamam de ficar de pé nos ônibus. Não reclama daquele jovenzinho ali sentado no assento preferencial enquanto aquele senhor deveria estar sentado lá.
Você é mulher e sofre calada? Vou falar uma coisa para vocês mulheres que sofrem caladas, vocês serão estatística amanhã. Vamos reagir gente! Vamos reagir! Homens parem de matar as mulheres! Parem! Mulheres denunciem! Eu estou aqui e eu tenho um plano. Meu plano é deixar vocês constrangidos e indignados a ponto de ouvirem minha voz. Se eu estive aqui de blusa ninguém estaria ouvindo o que estou dizendo. Mas eu nasci mulher, eu tenho peitos e eu quero usá-los para dizer. Parem de matar nossas mulheres!
Agora é sério gente! Andar de ônibus me dá muito vantagem na estrada da escrita. Olha se eu tivesse ido de moto teria perdido esta cena. E esta cena não seria escrita. Eu sou ótima com a decoração de falas, então gravei mentalmente as coisas que ela falava. Peguei meu caderninho de bolsa e escrevi um rascunho grosseiro sobre este acontecimento. E vou te contar uma coisa. Ô mulher corajosa! Ela fez este rebuliço dentro do ônibus por uns dez minutos. Vestiu a blusa, colocou fones de ouvido e desceu do ônibus. O que posso dizer?
Eu queria mesmo que ela tivesse ficado lá com peitos a mostra até o fim do meu trajeto.
Eu queria mesmo era ouvir mais o que ela tinha a dizer. Ô mulher corajosa!
No fim das contas ela queria mesmo é causar um impacto nas pessoas dentro daquele ônibus.
E acredito que ela tenha conseguido. Aquela gente toda constrangida. Aquela gente toda deslumbrada. Homens babando, mulheres odiando...
Mas quer saber? Ela tinha lá seu fundo de razão.
No nosso estado as mulheres morrem mesmo, morrem assassinadas em noventa por cento das vezes são crimes passionais. Aqui a gente torce o jornal e o sangue que jorra realmente é o sangue das mulheres. E todo mundo sabe disso, mas não faz nada. E eu que também sou defensora desta causa, e eu que também tenho um senso feminista dentro de mim, resolvi escrever este texto. Para que o apelo dela fique gravado. Para que a atitude daquela mulher ultrapasse a linha 501. Precisamos mesmo ter consciência desta realidade triste. Precisamos denunciar. Precisar sair por aí e mostrar de alguma forma que somos capazes de tentar lutar pela nossa comunidade, pela nossa humanidade. Tirar a blusa num ônibus lotado e gritar não mudará o mundo, certo? Não! Mas já é alguma coisa. Já é melhor que não fazer nada. Eu não julgo imoral, desonroso ou absurdo o ato daquela mulher. Eu julgo como corajoso!
Uma única mulher foi capaz de causar tanto embaraço. Uma única mulher me inspirou escrever este texto que será lido por tantos outros homens e mulheres.
Então eu me pergunto como se seria se tantas outras mulheres reagissem?
Cada ato causa um eco...
Precisamos refletir sobre isto.
Os ânimos se acalmaram e eu voltei para meu livro. Antes do fim do trajeto tenho uma pergunta:
- Qual tem sido sua contribuição?
Antes que este dia termine eu vou sentar no meu cantinho de escrever e vou transformar este rascunho grosseiro num texto elegante. E vou publicá-lo nas redes sociais, por considerar que minha contribuição será esta, ainda que mínima. Só para não perder a fé que as estatísticas um dia irão mudar.
O fim do trajeto não mudará o cenário.
Ônibus lotado.
(Uma mulher entrou no ônibus, feminista, era feminista!)
(Daniela Dias.)