(Crítica)
[ Este texto foi
escrito e publicado em outra rede social no verão de 2014. Descrição de uma
realidade.]
Transtorno no Trajeto das 18:00 horas.
Eram quase 18:00 horas, e eu estava num ônibus
abarrotado de gente.
Eram quase 18:00 horas, e eu estava lendo meu livro
Guerra das Salamandras.
Eram quase 18:00 horas, e eu estava de pé, dentro de um ônibus abarrotado de
gente.
Eram quase 18:00 horas, e o calor estava quase
insuportável.
- Verão!
Eram quase 18:00 horas, e quase todos nós estávamos
de pé.
Eram quase 18:00
horas, quase todos de pé dentro daquele ônibus abarrotado de gente.
Eram quase 18:00
horas, e mesmo assim estávamos de pé.
Eram quase 18:00
horas, e mesmo assim estávamos firmes segurando para não cairmos uns sobre os
outros a cada curva.
Eram quase 18:00 horas...
- Verão!
Eu trabalho num escritório por oito horas diárias
que quase sempre excedem.
Na maior parte deste
tempo eu fico só com a burocracia e a papelada.
Meu chefe nem sempre
fica por lá.
Estou citando isto,
para explicar o por que de alguma coisa sem sentido.
Então quando eu ando
por aí, no supermercado, na feira ou em ônibus abarrotados,
eu acho válido perceber o que acontece a minha
volta.
Por que na
maior parte do tempo eu fico sozinha.
Por
exemplo, hoje quero registrar o transtorno no trajeto das 18:00 horas...
- Verão!
Quando eram quase 18:00 horas deste dia, neste
ônibus por exemplo,
eu notei um monte de
corpos de pé, um monte de gente.
Gente lendo, gente
rindo, gente falando, gente rezando terço, gente comendo
ou fazendo o filho
parar com o choro.
E você deve estar se perguntando por que estou
descrevendo este cenário.
Isso é tão comum!
É tão comum ônibus abarrotado de gente as 7:00, as
08:00, ou de 17:00 as 18:00...
De repente o ônibus foi parado.
No meio da trajeto, homens
de farda, blitz no asfalto!
Todos atentos!
O que seria?
Fechei meu livro na página 62, Karel Kapek há de me
perdoar,
mas A Guerra das
Salamandras agora pode esperar.
Pus-me a observar!
E não somente eu, como
todos que estavam ali ocupando em uma determinada circunstancia
compartilhando o mesmo
ar, o mesmo tempo e o mesmo espaço.
Todos os que preenchiam de pé o ônibus abarrotado
se incomodavam e murmuravam...
Três jovens negros do ônibus foram retirados.
Do lado de fora, foram revistados.
Enquanto do lado de dentro pude notar:
- Sem drogas, sem armas e nenhum celular.
E mesmo assim não foram liberados...
Eles gesticulavam:
- Por quê?
Eu me perguntava:
- Por quê?
Já sei!
Pelo pecado?
- Jovens negros de cabelos pintados!
Bandidos?
-Talvez!
Mas vejam só que insensatez!
Três jovens negros, sem armas, sem drogas, sem
celulares
e não liberados, passaram de pardos, ah!
Deve ser por isso!
A verdade é que eles já foram condenados,
sem ao menos serem
julgados,
sem ao menos terem extraviado.
Sabe por quê?
- Por nasceram negros, por que seus cabelos
pintaram,
por que nasceram
pobres,
por que não estudaram.
Por terem nascido
neste país já foram condenados.
Estamos todos exaustos!
Eles, eu, e os
outros...
Já passavam das 18:00 horas, e o sol já havia
baixado.
Já passavam das 18:00
horas, e o calor continuava.
Já passavam das 18:00 horas, e o meu livro
continuava fechado.
Já passavam das 18:00 horas, e todos no ônibus já
estavam cansados.
Já passavam das 18:00 horas, e o desfecho deste
trecho?
Já passavam das 18:00
horas, e o ônibus foi liberado.
Cheio de pessoas, abarrotado!
Enquanto isso!
Uns aliviados...
Já passavam das 18:00
horas, e o motorista arrancou 1ª, 2ª,3ª marcha.
E todos aqueles dentro do ônibus se sentiam
injustiçados.
Por conta de três negros estavam atrasados!
Por conta de três negros estavam suados.
Alguns assim falavam:
- São bandidos!
São pretos!
São vagabundos!
São macacos!
Engoli o fel a seco, enquanto isto me doía o
peito...
E eu me perguntei:
- Desço, cresço, retruco, imploro ou choro?
Já passavam das 18:00 horas, e meu inconsciente,
meu juízo perfeito,
lastimando o mal dizer, o deleito.
Comandou que uma de minhas mãos se levantasse e
puxasse a cordinha do sinal.
Razoavelmente ainda que não querendo, decidi
descer.
Enquanto uns julgavam uma mulher dizia indignada:
- Pobre e negro não tem direitos a nada neste país!
E ela dizia com
indignação como se fosse uma negra.
Mas não era!
Era branca!
Preciso declarar.
A única mulher que
dizia esta frase em defesa não só daqueles três jovens
como de uma etnia, era
branca!
Uma mulher branca no trajeto das 18:00 horas...
Diferentemente dos que julgavam, pois, estes eram
outros negros,
religiosos com
bíblias, mães com bebês, mães com bebês negros acalentando o choro.
Filhos negros deste
país, bebês que vão crescer e pegar ônibus abarrotados sem suas
mães para protegê-los
daqui alguns anos.
Confesso!
Foi duro!
Quem me conhece na
intimidade sabe que sou uma Daniela incapaz de aceitar conviver
com tal condição.
[Desproteção].
Já passavam das 18:00 horas, e eu abandonei a
emoção por no máximo dois minutos.
Já passavam das 18:00
horas ,e eu fiquei dentro daquele ônibus abarrotado agindo racionalmente
enquanto o ônibus não parava.
Então ônibus parou:
- Desci
Já passavam das 18:00 horas, entrei em outro ônibus
e segui meu caminho.
Já passavam das 18:00 horas, e eu estava de pé,
dentro de outro ônibus abarrotado de gente, fazendo as mesmas coisas do ônibus
anterior.
Desta vez eu não estava lendo um livro.
Na verdade, eu estava escrevendo este texto num
planfleto velho que eu tinha na bolsa,
isto enquanto, eu
segurava minhas lágrimas e pensando como foi frustrante ter presenciado aquele
momento.
As 18:00 horas dentro
daquele ônibus abarrotado de gente vazia.
Vendo três rapazes
negros não sendo liberados, ainda que não tivessem nada que pudesse
incriminá-los.
Corrijo-me!
- Tinham a cor da pele e os cabelos tingidos de
amarelo por serem meninos, adolescentes.
Será que eu devo-me sentir aliviada por não ter
nascido totalmente negra?
Será que eu devo-me sentir aliviada por não ter um
filho totalmente negro?
Será que eu devo-me sentir aliviada por não ter
nascido com cabelo crespo?
Será que eu devo-me sentir aliviada por não ter
sido comigo ou com algum dos meus?
Será que devo-me
sentir aliviada por ter tido acesso a educação?
Será que devo-me
sentir aliviada por ter poder dar acesso a educação para meu filho?
Será que devo-me sentir aliviada por não ser
tatuada, nem ter tingido os cabelos ou por não ser eles?
Já passam das 18:00 horas, e eu estou torcendo para
que ao passar este texto a limpo eu mude minhas impressões sobre o
acontecimento no trajeto das 18:00 horas.
Sinto que não vão.
É!
Não vão.
Então vou publicar este texto como forma de
reflexão.
Então vou publicar este texto para mostrar minha
indignação.
Não só com os fardados
que estavam ali no ato do dever de seu trabalho.
Minha indignação é por ter nascido neste tempo,
nesta nação.
É por ter estado naquele trajeto antes das 18:00
horas.
É por ter presenciado negros, religiosos e mães
condenando aqueles rapazes.
Aqueles rapazes no trajeto das 18:00 horas, que
também estavam de pé,
num ônibus abarrotado,
respirando o mesmo ar que eu.
Eu que não pude fazer
nada por eles.
Sabe porque?
Já passavam das 18:00
horas e eu quero deixar registrado este momento.
Por que eles também são gente como eu.
Eles também tem uma
mãe, uma família como eu.
Alguém que choraria se
os perdesse, assim como eu.
Que não me sinto tão
mais especial só por que prestigiadamente não sou uma negra
a margem da sociedade.
Ainda bem que eu aprendi
a ler escrever.
Por que assim eu posso
deixar este registro e outros para meu filho.
Fim de texto.
Já passam de 18:00 horas.
O transtorno deste
trajeto continua latente em minha mente...